Classe, gênero, raça e colonialismo: a “interseccionalidade” de Marx

Kevin B. Anderson

Traduzido por
Débora Cunha

por Kevin B. Anderson. Publicado em 8 de fevereiro de 2021 em Monthly Review.

Traduzido por Débora Cunha. Revisado por Rafaela Milara.

Está claro, hoje, que a emancipação do trabalho da alienação e da exploração capitalista é uma tarefa que ainda nos confronta. O conceito de trabalhador de Marx não se limita aos homens brancos europeus, mas inclui negros e irlandeses superexplorados e, portanto, trabalhadores duplamente revolucionários, bem como mulheres de todas as raças e nações. Mas sua pesquisa e seu conceito de revolução vão além, incorporando uma ampla gama de sociedades agrárias não capitalistas de sua época, da Índia à Rússia e da Argélia aos povos indígenas das Américas, frequentemente enfatizando suas relações de gênero. Em seus últimos escritos, ainda parcialmente inéditos, ele volta seu olhar para o leste e para o sul. Nessas regiões fora da Europa Ocidental, ele encontra possibilidades revolucionárias importantes entre os camponeses e suas antigas estruturas sociais comunistas [communistic], mesmo quando estas estão sendo minadas por sua subsunção formal sob o domínio do capital. Em seu último texto publicado, ele vislumbra uma aliança entre essas camadas não operárias e a classe trabalhadora da Europa Ocidental.

“Proletários [Proletarier] de todos os países, uni-vos!” É com essas palavras eloquentes que Karl Marx e Friedrich Engels notoriamente concluem seu Manifesto comunista, em 1848.1 Isso sugere uma ampla luta de classes envolvendo milhões de trabalhadores por meio de fronteiras nacionais e regionais contra seus inimigos coletivos: o capital e a propriedade fundiária. Nesse mesmo Manifesto, Marx e Engels também escrevem, em outra passagem bem conhecida, que “os trabalhadores não têm pátria”, e, ainda, que “as diferenças e os antagonismos nacionais entre os povos [Völker] estão diminuindo cada vez mais” com o desenvolvimento de mercado capitalista mundial.2

Uma teoria geral abstrata do capital e do trabalho

No Manifesto, somos apresentados a grandes forças sociais — o proletariado ou a classe trabalhadora e seus oponentes — lutando uns contra os outros em escala internacional, na qual diferenças de cultura, nacionalidade e geografia foram derrubadas, ou estão sendo derrubadas, conforme o capital chega para dominar o mundo e os trabalhadores organizam sua resistência a ele. Marx e Engels estão escrevendo aqui em um nível muito alto de generalidade, abstraindo das especificidades da experiência de vida dos trabalhadores da Europa Ocidental e da América do Norte, e prevendo que sua sorte logo se tornará a dos trabalhadores do mundo — naquela época, principalmente camponeses trabalhando em sociedades predominantemente agrárias.

É nesse sentido que Marx e Engels também escrevem que o capitalismo, “por meio de sua exploração do mercado mundial, deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países”. Eles acrescentam: “A unilateralidade e a estreiteza imaginativa nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis”.3 O capital cria uma cultura mundial juntamente de seu mercado mundial, forçando sua introdução em todos os cantos do globo. Eles avançam a ponto de aplaudir, em termos imbuídos em condescendência eurocêntrica, a forma com que o capitalismo “atrai até as nações mais bárbaras para a civilização” ao “derrubar todas as muralhas da China” e força esses “bárbaros … a adotar o modo de produção burguês”.4 Enquanto sofrimento é produzido conforme as sociedades antigas são destruídas, o capital cumpre sua missão histórica: a criação de “forças produtivas mais massivas e colossais do que todas as gerações anteriores juntas”.5

Duas décadas depois, no prefácio de 1867 de O capital, Marx escreve, enfatizando a abstração com uma lógica semelhante, que a “forma de valor” que está no centro da produção capitalista não pode ser estudada apenas empiricamente em relação a mercadorias específicas produzidas. Ele acrescenta: “Por quê? Porque o corpo como um todo é mais fácil de se estudar do que suas células”. Portanto, para analisar o capitalismo e sua forma de valor adequada e completamente, deve-se recorrer ao “poder de abstração”, a fim de examinar a produção de mercadorias como um todo.6

Há, claramente, uma tendência universalizante sob o capitalismo, um sistema globalizante cuja extensão homogeneiza, regulariza e aplaina o mundo, desenraizando-o e mudando-o conforme necessário para maximizar a produção de valor, uma busca que forma a alma de um sistema sem alma. Essa mesma tendência universalizante cria uma contradição profunda, a oposição revolucionária da classe trabalhadora moderna, “unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista”.7

A experiência da classe trabalhadora é igualmente homogeneizada. Privada de seus meios de produção (terra, ferramentas etc.) e reduzida a um grupo de trabalhadores assalariados sem propriedade, prototipicamente em fábricas gigantes, a classe trabalhadora de Marx é alienada e explorada de maneiras específicas ao capitalismo. Já nos Manuscritos de 1844, ele escreveu sobre o trabalho alienado, um conceito aprofundado em O capital, na seção do fetichismo da mercadoria. No processo de produção capitalista, as relações humanas são fetichizadas porque os produtos do trabalho passam a dominar seus produtores, os trabalhadores, em uma inversão sujeito-objeto chocante. Esses trabalhadores, então, experimentam essa dominação como o poder impessoal do capital, que é ele próprio produzido por seu trabalho. O capital impera sobre eles, transformando as relações humanas em “relações entre coisas”, com a classe trabalhadora objetivada ao extremo.8

Raya Dunayevskaya está entre os poucos a enfatizar a declaração adicional de Marx de que essas relações “aparecem [erscheinen] como o que são”.9 O verbo alemão erscheinen [assim como a palavra apparaissent que ele usa nesse ponto da edição francesa] não é uma falsa ou “mera” aparência e difere de scheinen [francês: paraissent], que significa “aparecer”, no sentido de semelhança ou mesmo de falsa aparência. Assim, não estamos lidando com uma falsa aparência que esconde relações humanas “verdadeiras” e humanistas, mas com uma realidade nova e inédita baseada na “necessidade dessa aparência, porque isso é, na verdade, o que são as relações entre as pessoas no momento da produção” em um sistema capitalista.10 No longo prazo, é claro, tal relação humana coisificada é falsa no sentido de que será rejeitada e extirpada pela classe trabalhadora, a qual busca uma sociedade controlada não pelo capital, mas pelo trabalho livre e associado. Porém permanece totalmente real enquanto estamos sob a influência do modo de produção capitalista.

Ao mesmo tempo, os trabalhadores sofrem dura exploração material, pois a mais-valia que criam no processo de produção é apropriada pelo capital, em um sistema caracterizado pelo maior abismo da história entre o montante material das classes dominantes e o do povo trabalhador. Essa exploração cresce em termos absolutos e relativos à medida que o capital se centraliza e se desenvolve ainda mais tecnologicamente no processo do maior aumento quantitativo no desenvolvimento das forças produtivas da história humana.11

Marx reúne esses dois conceitos — exploração e alienação — em sua discussão sobre a acumulação de capital, em que o “sistema capitalista” transforma a labuta dos trabalhadores em “tormento” entorpecente, servindo para “alienar” dos trabalhadores “as potencialidades intelectuais dos processo de trabalho”, enquanto, ao mesmo tempo, a taxa de exploração aumenta: “a situação do trabalhador, seja seu pagamento alto ou baixo, deve piorar” em relação à acumulação vertiginosa de mais-valia pelo capital.12

A dialética concreta de Marx

O tipo de análise apresentada anteriormente mostra Marx como nosso contemporâneo, sobretudo em sua compreensão da busca ilimitada de mais-valia pelo capital e a profunda alienação e exploração concomitantes que ela inflige aos trabalhadores, das fábricas aos modernos call centers.

Ao mesmo tempo, esses tipos de declarações, especialmente quando lidas fora do contexto, têm sido usadas por décadas pelos críticos de Marx, tanto conservadores quanto de esquerda, para retratá-lo como um pensador cujo modelo abstrato de capital e de trabalho oclui diferenças nacionais, raça, etnia, gênero e outros aspectos crucialmente importantes da sociedade e da cultura humana.

Por um lado, esses críticos estão errados, porque o capitalismo é, de fato, um sistema social único que subverte e homogeneiza todas as relações sociais anteriores, tendendo à redução de todas as relações humanas àquelas do capital versus trabalho. Assim, não se pode compreender completamente as relações contemporâneas familiares e de gênero, o conflito étnico-racial e comunal ou a crise ecológica sem examinar as relações subjacentes descritas anteriormente. Pois a família, o quadro étnico e o ambiente natural são todos condicionados pelo fato subjacente de um modo de produção capitalista.

Mas, por outro lado, esses críticos levantam questões que nos fazem olhar mais atentamente para as categorias teóricas de Marx. É muito importante, nesse sentido, perceber, se alguém realmente deseja compreender a originalidade de Marx, que seu conceito de capital e trabalho foi apresentado não apenas em um alto nível de abstração, mas que, em outros níveis, abrange uma variedade muito mais ampla de experiência e cultura humana. Como Bertell Ollman13 enfatizou, Marx operou em vários níveis de abstração.

O presente artigo é centrado em três pontos relacionais:

  • Primeiro, a classe trabalhadora de Marx não era apenas europeia ocidental, branca e masculina, visto que, desde os seus primeiros escritos até os últimos, ele incorporou a classe trabalhadora em toda a sua variedade humana;
  • Segundo, Marx não era um reducionista econômico ou de classe, pois, ao longo de sua carreira, considerou profundamente várias formas de opressão e resistência ao capital e ao Estado que não eram baseadas inteiramente na classe, mas também na nacionalidade, na raça, na etnia e no gênero;
  • Terceiro, na época dos últimos escritos de Marx, muito depois do Manifesto comunista, o caminho do desenvolvimento capitalista industrial da Europa Ocidental a partir do feudalismo não era mais global universal. Caminhos alternativos de desenvolvimento eram, de fato, possíveis, e estes se conectavam a tipos de revolução que nem sempre se encaixavam no modelo em que o trabalho industrial derrubava o capital.

Em termos de uma dialética concreta, Marx segue na esteira de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Isso acontece desde seus primeiros escritos para O capital, no qual ele escreve sobre “a ‘contradição’ hegeliana, que é a fonte de toda dialética”.14 Uma característica marcante da estrutura dialética de Hegel, apesar de seu impulso geral universalizante, é sua rejeição de universais abstratos, evitando também um mero empirismo. Nenhum filósofo anterior havia trazido a história e a existência social para a filosofia dessa maneira, como visto especialmente em Fenomenologia do espírito, um livro tão crucial para a nossa compreensão do momento presente que duas novas traduções dele apareceram em 2018. Repetidamente, nessa obra, Hegel rejeita o universal abstrato como “a noite em que, como diz o ditado, todas as vacas são pretas”.15 A concretude de seus universais é vista também nas formas concretas de consciência ascendentes que se desenvolvem ao longo do caminho universal em direção à liberdade do espírito humano, da Roma antiga à Reforma e à Revolução Francesa de seu próprio tempo, cada uma delas limitada por seu contexto histórico, social e cultural. Claro, Marx também rejeita aspectos do idealismo de Hegel, especialmente sua ênfase no crescimento da consciência humana como o resultado mais importante da dialética da história, em oposição à realidade da liberdade humana e do desenvolvimento saudável em uma sociedade revolucionada de baixo para cima. Em suma, a dialética de Hegel, embora social e histórica, permanece um tanto desumanizada.

Tal ênfase no universal concreto de forma alguma nega minha citação anterior, na qual Marx escreve que é necessário o “poder de abstração” para chegar ao que é realmente crucial sobre o capitalismo: sua forma de valor e a existência desumanizada e fetichizada experienciada por aqueles que vivem sob seu domínio. Não, a solução deve ser abordada por ambas as direções. O abstrato repousa sobre o concreto, mas, ao mesmo tempo, o conceito abstrato deve se concretizar, tornar-se determinado. No entanto, Marx rejeita igualmente o que Karel Kosík chamou de “pseudoconcreto”, um tipo de concreto que não pode pensar além do que é imediatamente dado sob o capitalismo. Em oposição a essas formas falsas ou distorcidas de consciência, a dialética “dissolve artefatos fetichizados tanto do mundo das coisas quanto do mundo das ideias, a fim de penetrar em sua realidade”.16

Assim, Marx é hostil ao mero empirismo, abraçando uma forma dialética de totalidade. Ao mesmo tempo, ele castiga, como fez Hegel, os universais abstratos da filosofia idealista tradicional e do liberalismo moderno, com seus direitos humanos e civis que frequentemente não são mais do que uma fórmula para os que estão na base da sociedade. No entanto, ao mesmo tempo, abraça o que Hegel e ele chamaram de universal concreto, uma forma de universalidade que estava enraizada na vida social, mas apontada para além do mundo dado do “pseudoconcreto”.

Um exemplo do universal concreto pode ser vislumbrado em como Marx argumenta que não podemos medir adequadamente o mundo da exploração e da alienação capitalista, seja em seus próprios termos (o “pseudoconcreto”), seja comparando-o a formas passadas de dominação como o feudalismo europeu ocidental, o antigo mundo greco-romano, ou o modo de produção “asiático”. Em vez disso, ele mede a sociedade capitalista por um parâmetro diferente, o horizonte não realizado, mas potencialmente realizável, de um futuro comunista de trabalho livre e associado, como foi enfatizado em dois estudos recentes.17 Mas essa não é apenas uma república imaginada, como Nicolau Maquiavel caracterizou os modelos abstratos e esquemáticos da boa sociedade encontrados em antigos pensadores greco-romanos como Sócrates. A visão de futuro de Marx baseava-se nas aspirações e nas lutas de uma classe social realmente existente, o proletariado, à qual seus escritos procuravam dar uma forma mais universal e concreta.

A classe trabalhadora em toda a sua variedade humana

Desde o início, Marx viu a Grã-Bretanha como o país onde o modo de produção capitalista estava mais desenvolvido, muito à frente de qualquer outro país. Isso pode ser visto especialmente em O capital, no qual os exemplos britânicos de capital e trabalho predominam. Mas a classe trabalhadora britânica não era, de forma alguma, homogênea. Ao surgir em Manchester, a cidade de ponta do capitalismo do século XIX, a Revolução Industrial o fez explorando uma classe trabalhadora com profundas divisões étnicas entre trabalhadores ingleses e irlandeses. Engels discute essa questão longamente em seu livro de 1845, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, publicado logo após Marx e ele começarem a colaborar. Marx considerou esse livro como uma das maiores contribuições de Engels, citando-o mais do que qualquer outro dos escritos de seu amigo em O capital.

O próprio Marx considerou a Grande Fome irlandesa da década de 1840 como uma tragédia enraizada no processo de acumulação de capital, especialmente em O capital. Ele também escreveu sobre os trabalhadores irlandeses na Grã-Bretanha, especialmente entre 1869 e 1870, numa época em que a Primeira Internacional estava substancialmente engajada em apoiar os revolucionários irlandeses. Embora ele tenha conseguido convencer a Internacional a apoiar os irlandeses, foi uma batalha difícil. Ao mesmo tempo, essa era uma batalha que precisava ser travada e vencida, porque chegava ao cerne da razão pela qual — apesar de sua industrialização em larga escala e da classe trabalhadora organizada — a Grã-Bretanha não tinha atingido o nível de luta de classes previsto em textos escritos em um nível abstrato, como o Manifesto comunista. Ele ofereceu uma explicação em uma “Comunicação confidencial” da Internacional, emitida no início de 1870:

[A] burguesia inglesa não apenas explorou a pobreza irlandesa para manter a classe trabalhadora na Inglaterra sob controle por meio da imigração forçada de irlandeses pobres, mas também dividiu o proletariado em dois campos hostis… O trabalhador inglês comum odeia o trabalhador irlandês por vê-lo como um concorrente que reduz os salários e o padrão de vida. Ele sente uma antipatia nacional e religiosa. Ele o vê da mesma forma que os brancos pobres dos estados do sul da América do Norte viam os escravos negros. Esse antagonismo entre os proletários da Inglaterra é alimentado e mantido artificialmente pela burguesia. Ela sabe que essa cisão é o verdadeiro segredo da preservação de seu poder.18

Marx também viu esse antagonismo baseado na dupla opressão dos trabalhadores irlandeses, tanto como proletários quanto como membros de uma minoria oprimida, em termos dialéticos. Ele via os irlandeses como fonte do fermento revolucionário que poderia ajudar a desencadear uma revolução britânica. Assim, temos aqui a análise de uma classe trabalhadora realmente existente em um momento específico no tempo, a Grã-Bretanha em 1870, em oposição à maneira mais geral e abstrata pela qual ele e Engels conceituaram a classe trabalhadora no Manifesto.

Marx via a classe trabalhadora racialmente dividida dos Estados Unidos (EUA) em termos semelhantes. Ele se opôs fortemente à escravidão e defendeu o abolicionismo dentro do movimento da classe trabalhadora, atacando aqueles que, como Pierre Joseph Proudhon, eram mais ambíguos no assunto da escravidão.

Ele conceituou a escravidão africana como central para o desenvolvimento capitalista, escrevendo, já em Miséria da filosofia (1847):

A escravidão direta é tanto o pivô da indústria burguesa quanto as máquinas, o crédito etc. Sem escravidão não há algodão; sem algodão não há indústria moderna. Foi a escravidão que deu às colônias seu valor; foram as colônias que criaram o comércio mundial, e o comércio mundial é a precondição da indústria em grande escala.19

Durante a Guerra Civil de 1861–1865 nos Estados Unidos, Marx apoiou fortemente, embora de forma crítica, o Norte contra o Sul escravista. Ele considerava a guerra como uma segunda revolução americana que havia criado algumas possibilidades reais para a classe trabalhadora. Ele entoou em O capital:

Nos Estados Unidos, todo movimento de trabalhadores independentes ficou paralisado enquanto a escravidão desfigurou parte da república. O trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro. Contudo, uma nova vida surgiu imediatamente com a morte da escravidão. O primeiro fruto da guerra civil foi o movimento pela jornada de trabalho de oito horas, que percorreu, com as botas de sete léguas da locomotiva, do Atlântico até o Pacífico, da Nova Inglaterra à Califórnia.20

Nesse momento, ele aponta que um grande congresso nacional de trabalhadores ocorreu em 1866, um ano após o fim da Guerra Civil, no qual foi apresentada a demanda pela jornada de oito horas. Aqui, a abolição da escravidão é vista como a precondição para um verdadeiro movimento da classe trabalhadora no capitalismo racializado dos Estados Unidos.

Se a classe trabalhadora de Marx não era exclusivamente branca, tampouco era exclusivamente masculina. Em seu estudo sobre Marx e gênero, Heather Brown conclui que nas partes de O capital dedicadas à experiência de vida dos trabalhadores, “Marx não apenas identifica as condições mutáveis ​​do trabalhador masculino, mas também dá ênfase significativa ao papel das mulheres nesse processo”. Embora ele às vezes incorresse em “ecoar suposições paternalistas ou patriarcais” em suas descrições das trabalhadoras, é difícil argumentar, como alguns fizeram, que ele ignorou as mulheres trabalhadoras em seu livro mais importante.21

Isso também pode ser visto em sua discussão dialética das mudanças nas relações familiares e de gênero provocadas pela industrialização capitalista, que “dissolveu as velhas relações familiares” entre os trabalhadores, à medida que mulheres e crianças eram forçadas a trabalhar em empregos remunerados fora de casa, nos quais eram horrivelmente exploradas:

Por mais terrível e repugnante que possa parecer a dissolução dos antigos laços familiares dentro do sistema capitalista, a grande indústria, ao atribuir às mulheres, aos jovens e às crianças de ambos os sexos uma parte importante dos processos de produção socialmente organizados, fora da esfera da economia doméstica, cria, ainda assim, uma nova base econômica para uma forma superior de família e de relações entre os sexos.22

Marx voltou ao gênero e à família como tema de pesquisa no final de sua vida, como visto em seus Cadernos etnológicos, de 1880–188223, e em outros cadernos desse período. Nesses cadernos, ele explorou as relações de gênero em várias sociedades, dos nativos americanos pré-letrados e gregos homéricos à Irlanda pré-colonial e aos aborígenes australianos contemporâneos. Algumas dessas notas se tornaram a base para A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Engels. Embora esse trabalho contenha muitos entendimentos importantes, ele trata o aumento da opressão de gênero com um reducionismo econômico e de classe que foi muito menos sutil do que as notas que Marx deixou para trás e que Engels usou como fonte.24 Nesses cadernos também há uma preocupação profunda com o colonialismo, uma questão discutida a seguir, com a qual Engels não se envolveu.

Subjetividade revolucionária fora da classe trabalhadora

É importante notar que o interesse de Marx pelas questões de gênero não se limitou ao estudo das mulheres da classe trabalhadora. Desde seus primeiros escritos, ele apontou a opressão de gênero como uma forma crucial e fundamental de hierarquia social e dominação. Nos Manuscritos econômico-filosóficos, ele escreveu:

A relação direta, natural e necessária do ser humano [Mensch] com o ser humano é a relação do homem [Mann] com a mulher [Weib]… Portanto, com base nessa relação, podemos julgar todo o estágio de desenvolvimento do ser humano. Do caráter dessa relação decorre em que grau o ser humano se tornou e se reconheceu como um ser genérico; um ser humano; a relação do homem com a mulher é a relação mais natural do ser humano com o ser humano. Portanto nela é revelada o grau em que o comportamento natural do ser humano tornou-se humano.25

Aqui, Marx está preocupado não apenas com as mulheres da classe trabalhadora, como discutido anteriormente, mas também com outras camadas de mulheres, e ao longo de toda a trajetória da sociedade e da cultura humanas, não apenas no capitalismo. Ele aborda a opressão das mulheres modernas fora da classe trabalhadora em seu texto de 1846, “Sobre o suicídio”, no qual se concentra nas mulheres francesas de classes média e alta levadas ao suicídio pela opressão baseada no gênero por parte de maridos ou pais, escrevendo, em certo ponto, sobre as “condições sociais … que permitem ao marido ciumento agrilhoar sua esposa, como um avarento com sua reserva de ouro, pois ela é apenas parte de seu inventário”.26 Essas preocupações não terminaram com a juventude de Marx. Em 1858, ele escreveu de forma comovente, no New York Tribune, sobre Lady Rosina Bulwer Lytton, confinada a uma instituição mental por seu marido político por ter tentado falar sobre questões políticas.27

Marx também não se concentrou na classe trabalhadora industrial de forma a desconsiderar o campesinato, que ele via como uma classe oprimida e potencialmente revolucionária. Considerável atenção foi dada à sua caracterização do campesinato francês como um tanto conservador no XVIII Brumário de Luís Bonaparte (1852). Em outros contextos, porém, ele discutiu o potencial revolucionário dos camponeses, como durante o levante anabatista do século XVI na Alemanha. Quanto à sua época, na Crítica do programa de Gotha (1875), ele castigou Ferdinand Lassalle por rotular os “camponeses” como inerentemente conservadores, uma vez que a organização de Lassalle havia descartado “todas as outras classes” além da classe trabalhadora como “uma massa reacionária”.28

E, ao mesmo tempo em que condenava as formas racistas e imperialistas de nacionalismo, Marx também apoiou fortemente os movimentos nacionalistas que exibiam um claro caráter emancipatório. Muito antes de Vladimir Ilich Lenin articular um conceito de libertação nacional, em um discurso de 1848 sobre a Polônia, Marx traçou uma distinção entre o que chamou de movimentos “estreitamente nacionais [étroitement nacional]” e revoluções nacionais que eram “reformadoras e democráticas”, isto é, aquelas que apresentam questões como a reforma agrária, mesmo quando visavam às elites indígenas, em vez de apenas um inimigo estrangeiro ou poder de ocupação.29

Mesmo no Manifesto comunista, no qual, como discutido anteriormente, ele e Engels escreveram que as diferenças nacionais estavam desaparecendo, isso ocorria em um nível geral e abstrato. Pois, quando se tratou de concretizar os princípios em termos de um conjunto de objetivos imediatos e slogans, na seção final “Posição dos comunistas em relação aos partidos de oposição existentes”, a emancipação nacional polonesa das ocupações russa, austríaca e prussiana foi ainda assim destacada: “Na Polônia, apoiam o partido que insiste na revolução agrária como condição primordial para a emancipação nacional, o partido que fomentou a insurreição de Cracóvia em 1846”.30 Marx continuou a apoiar uma revolução nacional polonesa até o fim de sua vida. Ele saudou o levante polonês de 1863 com entusiasmo e, em seus escritos celebrando a Comuna de Paris de 1871, destacou a importante contribuição dos exilados poloneses na defesa militar da Paris revolucionária. Apropriadamente, no cemitério Père Lachaise, em Paris, os túmulos dos Communards incluem o do general polonês Walery Wróblewski, a apenas alguns passos dos túmulos dos descendentes franceses de Marx.

Na Comunicação Confidencial de 1870 sobre a Irlanda, o campesinato e o movimento nacional também se entrelaçaram como elementos revolucionários. Um ponto igualmente proeminente nesse texto é a defesa de Marx do apoio público da Internacional à emancipação nacional irlandesa, incluindo apelos à rainha para dar fim à execução de militantes irlandeses. Por essa questão, Marx e o Conselho Geral da Internacional em Londres foram atacados pela facção do anarquista Mikhail Bakunin, que assumiu uma posição reducionista de classe, rejeitando “qualquer ação política que não tenha como objetivo imediato e direto o triunfo do causa dos trabalhadores contra o capital”.31 Em resposta, Marx escreveu na Comunicação:

Em primeiro lugar, a Irlanda é o baluarte da propriedade de terras inglesa. Se caísse na Irlanda, cairia na Inglaterra. Isso é cem vezes mais fácil na Irlanda, porque a luta econômica está concentrada exclusivamente na propriedade da terra, porque essa luta é ao mesmo tempo nacional e porque as pessoas lá são mais revolucionárias e raivosas do que na Inglaterra. A propriedade de terras na Irlanda é mantida exclusivamente pelo exército inglês. No momento em que a união forçada entre os dois países terminar, uma revolução social estourará imediatamente na Irlanda.32

Além disso, ele deu a entender que tal processo também poderia quebrar o impasse em que os trabalhadores britânicos estavam presos:

Embora a iniciativa revolucionária venha provavelmente da França, só a Inglaterra pode servir de alavanca para uma revolução econômica séria… É o único país onde a grande maioria da população é formada por trabalhadores assalariados… Os ingleses têm todas as condições materiais [matière nécessaire] para a revolução social. O que falta é um senso de generalização e a paixão revolucionária. Só o Conselho Geral pode lhes fornecer isso, que pode assim acelerar o movimento verdadeiramente revolucionário neste país e, consequentemente, em todos os lugares … Se a Inglaterra é o baluarte da propriedade de terras e do capitalismo europeu, o único ponto onde a Inglaterra oficial pode ser atingida por um grande golpe é a Irlanda.33

Ele conceituou mais explicitamente essa noção da luta irlandesa pela independência como um detonador de uma revolução mais ampla da classe trabalhadora britânica e europeia em uma carta a Engels de 10 de dezembro de 1869:

Por muito tempo, acreditei que seria possível derrubar o regime irlandês pela ascensão da classe trabalhadora inglesa. Sempre expressei esse ponto de vista no New York Tribune. Um estudo mais aprofundado agora me convenceu do oposto. A classe trabalhadora inglesa nunca realizará coisa alguma antes de se livrar da Irlanda. A alavanca deve ser aplicada na Irlanda. É por isso que a questão irlandesa é tão importante para o movimento social em geral.34

Aqui, Marx também reconhece explicitamente uma mudança de posição, partindo de uma anterior, na qual ele viu a revolução proletária se espalhando das nações industriais centrais para a periferia. Nesse ponto, ele está começando a desenvolver a noção de uma revolução comunista transnacional, começando nas periferias mais agrárias e colonizadas do capitalismo e, então, se espalhando para as nações centrais. Durante os últimos anos antes de sua morte, em 1883, isso se tornaria uma grande preocupação com relação às sociedades fora da Europa Ocidental e da América do Norte.

Marx tardio: Índia, Rússia e além

Em A ideologia alemã, de 1846, Marx e Engels conceituaram vários estágios sucessivos do desenvolvimento histórico em termos eurocêntricos, mais tarde chamados de modos de produção: i) clã ou tribal; ii) greco-romano baseado em escravidão; iii) feudal baseado em servidão; iv) burguês ou capitalista assalariado formalmente livre; e, estava implícito, v) socialista baseado no trabalho livremente associado. Uma década depois, nos Grundrisse de 1857–1858, Marx discutiu os modos de produção originários da Ásia, especialmente da Índia (o modo de produção “asiático”) como um tipo de sistema pré-capitalista que não se enquadrava facilmente em ii) ou iii). Esse modo de produção representava algo qualitativamente diferente, sem tanta escravidão formal e com propriedade comunal ou coletiva e relações sociais duradouras nas aldeias.

Para Marx, isso constituía uma teoria da história mais global e multilinear, com sociedades asiáticas pré-modernas em um caminho de desenvolvimento um tanto diferente do da Europa Ocidental, especialmente da Roma antiga. Em O capital, vol. I, ele se referiu aos “antigos modos de produção asiáticos, clássicos e outros semelhantes”, nos quais a produção de mercadorias “desempenha um papel subordinado” em comparação com o modo de produção capitalista moderno.35 A distinção de Marx entre as sociedades pré-capitalistas asiáticas e europeias foi proibida na ideologia stalinista, que se agarrou ao modelo escravista-feudal-burguês de sucessão dos modos de produção, algo que exigia ginástica mental para encaixar sociedades como a Índia mogol ou a China confucionista nos modos de produção “feudal” ou “escravista”. Ainda na década de 1970, o notável antropólogo e estudioso de Marx Norair Ter-Akopian foi demitido do Instituto Marx-Engels-Lenin em Moscou por ter publicado um livro sobre o modo de produção asiático.

Em notas de seus últimos anos não publicadas até a morte de Stalin, Marx resumiu e comentou Communal Property [Propriedade comunal] (1879) de seu jovem amigo antropólogo Maxim Kovalevsky, especialmente sua abordagem da Índia pré-colonial. Embora aprecie grande parte da análise de Kovalevsky, Marx investiu contra suas tentativas de tratar a Índia mogol, com seu sistema estatal altamente centralizado, como feudal: “Kovalevsky aqui pensa o feudalismo no sentido da Europa Ocidental. Kovalevsky esquece, entre outras coisas, a servidão, que não se encontrava na Índia, e que é uma característica essencial”. Marx conclui que, no que diz respeito ao “feudalismo”, “encontra-se tão pouco na Índia quanto em Roma”.36 Essas notas, disponíveis em inglês desde 1975, não foram incluídas nas Obras escolhidas de Marx e Engels. Nenhuma das notas sobre Kovalevsky ou outros textos posteriores sobre a Índia podem ser encontrados na coleção mais recente de escritos de Marx sobre a Índia.37 No entanto, a abrangente introdução de Irfan Habib a esse volume menciona brevemente os cadernos do falecido Marx sobre a Índia e sua “objeção a qualquer designação das comunidades indianas como ‘feudais’”.38

Tudo isso seria apenas um tópico acadêmico se Marx não tivesse associado essas questões às questões contemporâneas do colonialismo e da revolução mundial. Nos anos 1848–1853, Marx tendeu a um apoio implícito ao colonialismo, seja ao forçar uma inserção da China tradicionalista no mercado mundial, como citado anteriormente do Manifesto comunista, ou em seus artigos de 1853 sobre a Índia, que celebravam o que ele via como aspectos progressistas e modernizadores do domínio britânico. Em 1853, ele retrata a Índia como atrasada em termos socioeconômicos, incapaz de mudanças reais vindas de dentro e de resistir seriamente à invasão estrangeira devido às suas divisões sociais. Portanto ele pôde escrever naquele ano, em seu artigo “British Rule in India” [“Domínio britânico na Índia”] para o Tribune, que o colonialismo britânico carregava, em seu rastro, “a maior e, para falar a verdade, a única revolução social da qual se ouviu falar na Ásia”.39 De fato, Edward Said e outros caricaturaram seus artigos sobre a Índia de 1853 como completamente pró-colonialistas, ignorando outro escrito importante publicado algumas semanas depois, The Future Results of British Rule in India” [“Os resultados futuros do domínio britânico na Índia”], que atacava a “barbárie” do colonialismo britânico e aplaudia a possibilidade de a Índia poder, um dia, “se livrar completamente do jugo inglês”.40 Ainda assim, algumas das críticas de Said são acertadas no que diz respeito ao eurocentrismo e ao etnocentrismo dos escritos de 1853.

Na época dos Grundrisse de 1857–1858, com sua discussão sobre a Índia pré-colonial estar em uma trajetória histórica diferente da Roma antiga, Marx também se colocava publicamente, de novo no Tribune, em apoio ao levante cipaio antibritânico na Índia e à resistência chinesa aos britânicos na Segunda Guerra do Ópio. Mas seu apoio a essa resistência anticolonial permaneceu em um nível bastante geral. Marx não abraçou os objetivos ou as perspectivas políticas gerais dos chineses ou dos indianos que resistiam ao imperialismo, o que não parecia ser democrático ou comunista.41 Isso difere de seus últimos escritos sobre a Rússia, que viram movimentos comunistas emancipatórios emergindo das aldeias comunais daquele país. Assim, o pensamento de Marx sobre essas questões parece ter evoluído ainda mais após 1858.

Caminhos multilineares de desenvolvimento e revolução

Durante seus últimos anos, Marx nunca terminou os volumes 2 e 3 de O capital, embora tenha retrabalhado o volume I meticulosamente para a edição francesa de 1872–1875, alterando várias passagens que pareciam implicar que as sociedades fora da estreita faixa do capitalismo industrializado teriam inevitavelmente de modernizar-se no sentido industrial ocidental. Na edição original de 1867, ele havia escrito: “O país mais desenvolvido industrialmente apenas mostra, aos menos desenvolvidos, a imagem de seu próprio futuro”.42 Mesmo o estudioso geralmente cuidadoso Teodor Shanin viu esta passagem como um exemplo de “determinismo unilinear”.43 Ele, portanto, traçou uma distinção nítida entre O capital (determinista) e os últimos escritos de Marx sobre a Rússia (abertos e multilineares). Mas Shanin e outros estudiosos que cobraram Marx por essa passagem não perceberam que, na edição francesa subsequente, de 1872–1875, a última versão do livro que ele mesmo enviou para publicação, ele reformulou esta passagem: “O país mais desenvolvido industrialmente apenas mostra, àqueles que o seguirem na escada industrial [le suivent sur l’échelle industrielle], a imagem de seu próprio futuro”.44 Dessa forma, ele removeu qualquer indício de determinismo unilinear e, o mais importante, sugeriu que o futuro das sociedades fora da Europa Ocidental poderia seguir um caminho diferente.

Marx fez uma declaração muito mais explícita a respeito de sua abordagem multilinear das possibilidades históricas das sociedades agrárias fora da Europa Ocidental no rascunho de uma carta de 1877, no qual criticou fortemente qualquer ideia de “transformar meu esboço histórico [na seção ‘Acumulação primitiva’ de O capital — KA] da gênese do capitalismo na Europa Ocidental em uma teoria histórico-filosófica do curso geral fatalmente imposto a todos os povos, quaisquer que sejam as circunstâncias históricas em que se encontram”, carta na qual ele também citou a edição francesa de O capital.45

Marx também voltou extensamente ao assunto da Índia em suas notas de 1879 sobre Kovalevsky46 citadas anteriormente, em suas Notas sobre a história da Índia47 e em seus Cadernos etnológicos, de 1880–1882.48 Durante esses últimos anos, ele escreveu sobre o “comunismo primitivo” camponês russo como um locus de resistência ao capital e de possíveis ligações com o movimento comunista revolucionário da classe trabalhadora no Ocidente. Isso é visto em uma famosa passagem de seu último texto publicado, o prefácio de 1882 em que ele e Engels contribuíram para uma nova edição russa do Manifesto comunista: “Se a revolução russa se tornar o sinal para uma revolução proletária no Ocidente, de forma que as duas se complementem, então a atual propriedade comunal russa [Gemeineigentum] pode servir como ponto de partida [Ausgungspunkt] para um desenvolvimento comunista”.49

Em seus últimos escritos sobre a Rússia e nos cadernos sobre o Sul da Ásia, o Norte da África, a América Latina e uma série de outras sociedades agrárias, pastorais ou de caçadores-coletores, Marx está profundamente preocupado com a ascensão das hierarquias social e de gênero durante o declínio da formações sociais comunais.50 Também é muito provável que ele se interessasse pelas aldeias do Sul da Ásia, do Norte da África e da América Latina, assim como pelas russas, enquanto possíveis locais de resistência ao capital e, portanto, potenciais aliados das classes trabalhadoras da Europa Ocidental e da América do Norte.

Por exemplo, nas notas de Marx a respeito da longa discussão de Kovalevsky sobre a Índia, ele descreve em detalhes a transformação de organização da aldeia comunal baseada em parentesco para uma mais baseada na mera residência. Nesse estágio, ele rejeitou claramente sua noção anterior de uma Índia imutável até a chegada do capitalismo por meio dos britânicos. No entanto, ao contrário de seus escritos sobre a Irlanda, ele nunca reconhece essa mudança explicitamente, como em sua carta de 1869 a Engels sobre a Irlanda, citada anteriormente. (É claro, temos menos informações sobre o pensamento de Marx em seus últimos anos. Em 1879, Engels, seu interlocutor intelectual mais regular, não estava mais na distante Manchester recebendo as cartas de Marx, mas era um vizinho que o visitava quase diariamente, sem deixar muitos rastros de papel de suas conversas. As cartas de Marx para Kovalevsky também foram queimadas por seus amigos na Rússia, que foram à sua casa fazê-lo por medo de que caíssem nas mãos da polícia, o que poderia ter colocado o jovem antropólogo em perigo.)

Como visto anteriormente, já na revolta dos cipaios de 1857, Marx parece ter se afastado de sua noção anterior da Índia como uma civilização passiva que não oferecia muita resistência à conquista estrangeira. Ele registrou dados detalhados sobre a resistência indiana em outro conjunto de anotações, feitas por volta de 1879, sobre a obra Analytical History of India [História analítica da Índia] (1870), do oficial colonial britânico Robert Sewell, publicada em Moscou como Notas sobre história da Índia, de Marx51, sem conhecimento de que esse volume consistia principalmente em trechos extraídos do livro de Sewell. Nessas notas, Marx registra dezenas de exemplos de resistência indiana aos invasores estrangeiros e governantes domésticos, desde os primeiros registros históricos até o levante dos cipaios. Além disso, as notas de Marx agora veem as conquistas mogol, britânica e outras ocorridas na Índia como contingentes, e não como produto de forças sociais inevitáveis.

Mas o foco principal de Marx nesses últimos cadernos sobre o Sul da Ásia, o Norte da África e a América Latina é a estrutura e a história da propriedade e das relações sociais comunais nessas regiões e como o colonialismo desenraizou essas relações sociais anteriores. Ao mesmo tempo, como pensador dialético, Marx também observa a persistência de resquícios dessas formas sociais comunais, mesmo depois de terem sido intensamente minadas pelo colonialismo. Teria ele passado a acreditar que a aldeia indiana, argelina ou latino-americana poderia se tornar um locus de resistência ao capital, como havia teorizado em 1882 a respeito da aldeia russa? Essa é minha conclusão após anos de estudo desses cadernos.

De fato, ele nunca disse tal coisa explicitamente. Além disso, em seus últimos escritos sobre a Rússia, nos rascunhos de sua carta de 1881 a Vera Zasulich, ele chega a apontar uma diferença fundamental com a Índia, que a Rússia não havia “sido vítima, como as Índias Orientais, de uma potência estrangeira conquistadora”.52

Ainda assim, acho difícil acreditar que Marx se envolveu em um estudo tão profundo e extenso das formações sociais comunais no Sul da Ásia, no Norte da África e na América Latina pré-coloniais e mesmo coloniais sem um objetivo além da pesquisa puramente histórica. Como Luca Basso, estudioso italiano de Marx, observa, Marx estava, em seus últimos escritos sobre a Rússia e outras sociedades não ocidentais, operando em “dois planos”: o da “interpretação histórico-teórica” ​​e o da “viabilidade ou não de um movimento revolucionário” no contexto do que estava estudando.53 O fato de ele ter realizado essa pesquisa nos anos imediatamente anteriores a seu chamado no prefácio de 1882 ao Manifesto, sobre um levante nas aldeias comunais da Rússia que se ligaria ao proletariado ocidental como o “ponto de partida para uma revolução comunista”, sugere a conexão de todas essas pesquisas sobre o comunismo primitivo. Como Dunayevskaya argumentou no primeiro trabalho que ligou esses cadernos às preocupações modernas com a revolução e a libertação das mulheres: “Marx retorna para explorar a origem da humanidade, não com o propósito de descobrir novas origens, mas para perceber novas forças revolucionárias, suas razões”.54

É importante ver tanto suas brilhantes generalizações sobre a sociedade capitalista quanto as maneiras muito concretas pelas quais ele examinou não apenas a classe, mas também o gênero, a raça e o colonialismo, e o que hoje seria chamado de interseccionalidade de todos estes. Seu humanismo revolucionário subjacente era o inimigo de todas as formas de abstração que negavam a variedade e a multiplicidade da experiência humana, especialmente quando sua visão se estendia para além da Europa Ocidental. Por essas razões, nenhum pensador nos fala hoje com tanta força e clareza.

Notas

Bibliografia abaixo

  1. MECW 6: 519; MEW 4: 493, tradução do autor, por vezes.
  2. MECW 6: 502–03; MEW 4: 479.
  3. MECW 6: 488.
  4. MECW 6: 488.
  5. MECW 6: 489.
  6. Marx 1976: 90.
  7. Marx 1976: 929.
  8. Marx 1976: 166.
  9. Marx 1976: 166; MEW 23: 86; Marx 1994: 607.
  10. Dunayevskaya 1958: 100, ênfase no original.
  11. Marx 1976: 929.
  12. Marx 1976: 799.
  13. Ollman 1993.
  14. Marx 1976: 744.
  15. Hegel 2018: 10.
  16. Kosík 1976: 7.
  17. Hudis 2012; Chattopadhyay 2016.
  18. MECW 21: 120, ênfase no original.
  19. MECW 6: 167.
  20. Marx 1976: 414, ênfase no original.
  21. Brown 2012: 91.
  22. Marx 1976: 620–21.
  23. Krader 1974.
  24. Dunayevskaya 1982; Anderson 2014; Brown 2012.
  25. Menção emPlaut e Anderson 1999: 6, ênfase no original; ver também MECW 3: 295–96 para uma tradução mais recente.
  26. Plaut e Anderson 1999: 58.
  27. Dunayevskaya 1982; Brown 2012.
  28. MECW 24: 88–89.
  29. Marx 1994: 1001, tradução do autor do original francês; ver também MECW 6: 549.
  30. MECW 6: 518.
  31. Menção em MECW 21: 208.
  32. MECW 21: 119–120,tradução ligeiramente alterada pelo autor com base no original francês em Marx 1966: 358–59.
  33. MECW 21: 118–19, tradução ligeiramente alterada pelo autor com base no original francês em Marx 1966: 356–57.
  34. MECW 43: 398, ênfase no original.
  35. Marx 1976: 172.
  36. Krader 1975: 383.
  37. Husain 2006.
  38. Husain 2006: xxxv.
  39. MECW 12: 132.
  40. MECW 12: 221.
  41. Benner 2018.
  42. Marx 1976: 91.
  43. Shanin 1983: 4.
  44. Marx 1976: 91, tradução do autor, ver também Anderson 2014.
  45. Shanin 1983: 136.
  46. Krader 1975.
  47. Marx 1960.
  48. Krader 1974.
  49. Shanin 1983: 139, ver também MECW 24: 426 e MEW 19: 296, tradução ligeiramente alterada pelo autor.
  50. Alguns desses cadernos ainda não foram publicados e aparecerão na Marx-Engels Gesamtausgabe ou MEGA, mas seus aspectos foram discutidos em Brown 2012; Pradella 2015 e Anderson 2016.
  51. Marx 1960.
  52. Shanin 1983: 106.
  53. Basso 2015: 90.
  54. Dunayevskaya 1982: 187.

 

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