Raça, reconhecimento e revolução: o debate sobre as “políticas de identidade”

Peter Hudis

Esses comentários feitos em uma plenária sobre “As Políticas da Identidade” na Conferência Historical Materialism, em Londres, em novembro de 2018, exploram a controversa questão da política de raça, classe e identidade através das lentes de alguns dos escritos psiquiátricos recém-publicados de Frantz Fanon – Editores

Traduzido por
Rhaysa Ruas

Costuma-se dizer que a forma como um problema é enquadrado determina sua solução. Este é especialmente o caso quando se trata da relação entre raça e classe. Vou enquadrar os meus comentários sobre este problema aqui à luz da problemática crítica que nos desafia – a necessidade de desenvolver uma alternativa viável ao capitalismo.   Todasas posições teóricas sobre identidade, raça e classe, na minha opinião, têm que ser medidas em relação ao quão efetivamente elas abordam esse problema.

 

Claramente, aqueles que buscam o reconhecimento de sua distinção racial ou étnica enquanto ignoram as relações de classe ficam muito aquém de propor uma alternativa ao capitalismo. Mas será que os críticos que clamam pela primazia da classe e que se concentram em exigir uma redistribuição “mais justa” de bens e recursos fazem melhor? É difícil não notar que a maioria dos críticos de esquerda da política de reconhecimento de hoje tendem a equiparar uma alternativa anticapitalista a um programa social-democrata de redistribuição de renda. Embora isso possa ser útil para reviver as discussões sobre o socialismo, ela não atinge mais a lógica do capital do que aqueles que ignoram a classe em favor da identidade racial. Afinal, as medidas redistributivas keynesianas não são apenas compatíveis com o capitalismo, mas em alguns casos são necessárias para sua continuidade. Enfrentamos, portanto, um dilema: um lado afirma a identidade às custas da classe, o outro afirma a classe às custas da identidade, mas também não avança em ameaçar a lógica do capital ou em vislumbrar uma alternativa ao capitalismo baseada na transcendência da produção de valor.

 

À luz disso, precisamos de recursos teóricos que abordem raça e classe, de modo a desenvolver uma alternativa anti-capitalista mais completa. Um desses recursos é fornecido pelo contínuo renascimento do interesse em Frantz Fanon. Embora ele seja amplamente conhecido por sua ênfase no reconhecimento, Fanon nunca o igualou à mera afirmação de distinção racial ou étnica dentro dos parâmetros da sociedade existente. Na verdade, a tese central de Pele Negra, Máscaras Brancas é que é impossível para as pessoas de cor obter reconhecimento quando as relações de classe assumem uma forma racializada. O escravo hegeliano parece obter o reconhecimento do mestre, mas isso não se aplica, Fanon argumenta, em uma sociedade racista na qual o mestre não “vê” os negros como humanos. O reconhecimento mútuo, ele insiste, “implica em reestruturar o mundo”. [ i ]

 

Devo acrescentar que, mesmo na seção da Fenomenologia do Espírito de Hegel que lida com a dialética mestre/escravo, o reconhecimento não é realmente alcançado. O escravo obtém um nível inicialde reconhecimento, mas Hegel acrescenta que a “sua própria consciência”, alcançada em sua luta contra o mestre, torna-se pouco mais que uma “fração de esclarecimento” se suas aspirações subjetivas não forem conciliadas com as realidades do mundo objetivo. O reconhecimento torna-se atualizado somente muito mais tarde na Fenomenologia, na discussão da confissão na seção “Espírito Certo de si: Moralidade”.

 

Nada disso pode parecer diretamente relacionado à classe. De fato, Fanon é frequentemente acusado de ignorar a classe. Mas esse não é o caso, como mostra a recente publicação dos escritos literários, psiquiátricos e políticos de Fanon, que estavam anteriormente indisponíveis. Em um artigo psiquiátrico, “Condutas de Confissão no Norte da África”, Fanon explora por que as vítimas do colonialismo muitas vezes se recusam a confessar crimes dos quais são claramente culpadas. A razão, diz ele, é que a confissão depende de uma relação contratual – que está ausente em um contexto colonial. Ele escreve: “Eu confesso como um homem e sou sincero. Eu também confesso como um cidadão e eu valido o contrato social. ” [ii]   A confissão depende do reconhecimento prévio: “Não pode haver reintegração se aqui nunca houve integração”. [iii]   Permanecendo em silêncio e recusando-se a confessar, parece que os sujeitos colonizados se submetem à autoridade; mas, na verdade, Fanon argumenta, eles estão expressando uma forma de resistência a uma sociedade racista que os deixa fora do contrato social.

 

Em contraste, as relações de classe capitalistas tomam a forma de aparência de um contrato. Os trabalhadores vendem sua força de trabalho aos capitalistas que concordam em pagá-los, desde que aumentem a mais-valia. O reconhecimento existe em um níveljurídico. O trabalho assalariado é, obviamente, uma espécie de escravidão, uma vez que os capitalistas não se importam com os trabalhadores como seres humanos: eles só estendem o reconhecimento à atividade fisiológica de dispêndio a força de trabalho. As vítimas do racismo, no entanto, recebem menos do que isso. O racismo impede o reconhecimento mútuo e, portanto, anula o contrato social. Como resultado, a confissão – incluindo o nível proposto por Hegel na Fenomenologia – torna-se implausível. Mas há um positivo neste negativo. Como as vítimas do racismo têm laços mais fracos com as relações jurídicas, sua revolta tem o potencial de ir além de se opor às iniquidades da sociedade moderna, ao questionar mais profundamente o seu caráter desumanizado.

 

Fanon não ignora a classe, como fica claro em sua discussão sobre as raízes econômicas do racismo anti-negro. Mas ele não reduz a raça à classe, pois são formas diferentes de dominação que produzem diferentes respostas subjetivas. Ignorar isso dificulta gravemente o esforço para desenvolver uma alternativa viável ao capitalismo. Afinal, os trabalhadores nunca são puramente trabalhadores; eles são constituídos de especificidades de etnia, raça e gênero. No entanto, aqueles que rejeitam a política de identidadetout courta partir de uma posição que privilegia a classe tendem a ver os trabalhadores como abstraídos de fatores exógenos ao processo de produção e reprodução. Ironicamente, é exatamente assim que “o trabalhador” aparece do ponto de vista do capital: como um mero portador da força de trabalho, o dispêndio de trabalho indiferenciado no abstrato. Considerar pessoas abstraídas do mundo real, de sua experiência vivida, pode ser adequado do ponto de vista do capital, mas é completamente inadequado para aqueles que tentam libertar a humanidade do domínio do capital.

 

Ao prestar atenção aos contornos específicos da opressão racial, a análise de Fanon vai além daquelas que equiparam a análise de classes a um programa social-democrata de redistribuição de renda e recursos. Como se sabe, ele argumentou que aqueles que negam o reconhecimento por normas e instituições racistas habitam uma “zona de negatividade” que resulta tanto em despersonalização quanto em uma busca para superá-lo. Em outro de seus escritos psiquiátricos, ele relaciona isso ao modo como os trabalhadores estão sujeitos a uma determinação temporal alienada. Ao contrastar a noção fluida de temporalidade por parte dos norte-africanos com a noção objetiva e abstrata de tempo que prevalece no Ocidente, ele escreve: “As relações dos trabalhadores com o aparato são estritas, cronometradas. Para o trabalhador, estar no horário significa estar em paz com o relógio do tempo. A noção moral de culpa é apresentada aqui. O relógio de tempo impede e limita a culpa endêmica do trabalhador… o relógio do tempo está continuamente presente, ele representa o aparato geral que emprega o trabalhador. Antes do relógio, o trabalhador tinha a possibilidade de se desculpar; a partir de agora, o trabalhador é constantemente rejeitado na solidão com a impossibilidade de persuadir o empregador sobre sua boa-fé”. [iv]

 

O trabalhador sentiu-se culpado e “pediu desculpas” – ele confessou – por não acompanhar o ritmo do relógio. A culpa surge do contrato quebrado – de uma dívida que resta a ser paga. Mas os contratos são entre pessoas, não entre pessoas e coisas. O capital emprega trabalhadores em uma relação contratual para aumentar o valor. Mas, ao mesmo tempo, é levado a substituir o trabalho vivo por coisas no ponto de produção. Assim, a lógica do capital acaba por enfraquecer sua forma contratual de aparência. Não pode haver reconhecimento entre pessoas e uma determinação de tempo abstrata e impessoal que realmente as emprega. A superação da lógica do capital exige, portanto, uma transformação mais profunda do que apenas atacar as personificações do capital. Fanon escreve: “O trabalho deve ser recuperado como a humanização do homem. O homem, quando se lança no trabalho, fecunda a natureza, mas também se fecunda”. [v]

 

A “humanização da humanidade” envolve não apenas abolir o direito de propriedade jurídica dos capitalistas; acima de tudo, implica em desenraizar as relações sociais em que as pessoas são tratadas como coisas. Este deve ser o cerne de qualquer esforço para vislumbrar uma alternativa ao capitalismo. A economia redistributiva pode ser um passo para chegar lá, mas certamente não é suficiente. Precisamos de um horizonte estratégico mais amplo que se baseie na resistência à desumanização que define o capitalismo misógino e racista de hoje. Como Louis Lavelle escreveu há muito tempo, “Filosofia e vida só têm um caráter sério na condição de que o Absoluto não está diante de mim e fora de mim como um objetivo inescapável, mas, ao contrário, está em mim e nisso eu traço meu caminho”. [vi]

 

[i] Frantz Fanon, Black Skin, White Masks, translated by Richard Philcox (New York: Grove Press, 2008), p. 63.

[ii] “Conducts of Confession in North Africa (I),” Frantz Fanon, Alienation and Freedom(London: Bloomsbury, 2018), p. 415.

[iii] “Conducts of Confession in North Africa (II),” Alienation and Freedom, p. 412.

[iv] “The Meeting Between Society and Psychiatry.” Alienation and Freedom, p. 522.

[v] Ibid., p. 530.

[vi] Louis Lavelle, De l’acte (Paris: Montaigne, 1946), p. 49.

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