This is the Portuguese version of the same article featured here in English https://imhojournal.org/articles/student-strike-at-the-university-of-sao-paulo-shows-deep-solidarity/ — Editors
O dia 18 de setembro de 2023 deveria ser marcado pela primeira palestra do professor Kevin B. Anderson na Universidade de São Paulo (USP), considerada a melhor universidade da América Latina1 e a maior do Brasil, contando atualmente com pouco mais de 97000 estudantes, 5380 professores e 13360 funcionários2.
Nós esperávamos que a palestra fosse assistida por centenas de estudantes, mas não contávamos, contudo, que do lado de fora do auditório os estudantes iniciariam uma greve pela contratação imediata de professores e funcionários, por melhores condições de trabalho, ensino e pesquisa.
A greve teve início quando o diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Paulo Martins, enviou a segurança privada da USP e a Polícia Militar (PM) para encerrar as atividades da FFLCH, expulsar estudantes e professores dos prédios e fechar todas as entradas. O pretexto para essa ação violenta foi a ameaça de danos ao patrimônio da Universidade.
Na USP, há uma tradição que se iniciou há algumas décadas: para que as decisões das assembleias estudantis sejam respeitadas, quando os estudantes votam a favor de paralisação ou greve, organizam-se piquetes nos corredores das faculdades para que nenhuma aula aconteça. Paulo Martins utilizou essa decisão, democraticamente votada em assembleia, como desculpa para deliberadamente atacar o movimento estudantil.
Logo, a repressão violenta dos seguranças e da polícia foi a fagulha que incendiou o movimento estudantil. Imediatamente após o fechamento da faculdade, uma assembleia extraordinária aprovou o início imediato da greve, enquanto alguns estudantes ocupavam o prédio da administração para exigir tanto a reabertura da faculdade como uma explicação oficial dos motivos reais pelos quais a direção enviou seguranças e a PM para encerrar as atividades na FFLCH.
Os estudantes demandam: a implementação de cotas para pessoas trans, um vestibular indígena, a contratação imediata de novos professores e o reconhecimento dos direitos estudantis. Durante as assembleias, os estudantes demonstraram como a USP melhorou a posição nos rankings internacionais em razão do aumento da exploração dos estudantes de graduação, de pós-graduação, dos docentes e dos demais funcionários.
A USP foi a última universidade pública brasileira a reservar 50% de suas vagas para cotas raciais e sociais. Desde que as cotas foram implementadas, em 2018, a quantidade de estudantes pretos e indígenas vindos de escolas públicas tem aumentado: em 2023, 54,1% dos novos estudantes da graduação vieram de escolas públicas e 27,2% são pretos ou indígenas3. Para garantir as condições mínimas para que esses estudantes permaneçam na universidade, o movimento estudantil conquistou bolsas de estudo, conhecidas como “auxílio permanência”. No começo de 2023, porém, a USP abriu mão de R$ 5 milhões de verbas públicas para que empresas privadas começassem a gerir parcialmente as bolsas.
Essa gestão neoliberal da USP também causou profundos impactos nos docentes e demais trabalhadores. Havia uma política, denominada gatilho automático, pela qual novos docentes eram contratados imediatamente após aposentadorias ou exonerações. Desde 2011, porém, esse mecanismo deixou de ser respeitado, o que fez com que as faculdades perdessem, em menos de dez anos, um total de 1042 professores4. A falta de professores não só acarretou sobrecarga de trabalho, como também afetou profundamente o funcionamento de alguns cursos do bacharelado. Por exemplo, alunos do curso de Letras que estudam na habilitação em Japonês não conseguem se formar, pois algumas disciplinas deixaram de ser oferecidas, enquanto a habilitação em Coreano não mais pode receber novos alunos por conta da falta de professores. Problemas similares foram relatados por estudantes de todas as faculdades durante as assembleias da greve.
A demanda dos estudantes é pela contratação imediata de 1683 professores. A reitoria, porém, insiste que só poderá contratar 1027, a ser distribuídos conforme critérios de merecimento, ou seja, as faculdades que cumprirem com as exigências impostas pela reitoria receberão uma maior quantidade de novos docentes. Como bem pontuaram os estudantes durante as assembleias, os critérios de merecimento são puramente quantitativos e visam apenas produzir estatísticas para que a USP suba nos rankings internacionais de avaliação das universidades, em detrimento da qualidade e do trabalho envolvido nas pesquisas.
Os trabalhadores não-docentes da USP também sofreram bastante nos últimos anos. Desde 2014, houve uma redução de 4338 funcionários, além do congelamento dos vencimentos. A USP alega, obviamente, que isto se deu em razão de problemas orçamentários, embora tenha encerrado 2022 com mais de R$ 5 bilhões em caixa5. Em nota veiculada internamente, o Sindicato dos Trabalhadores da USP manifestou profunda solidariedade aos estudantes, lembrando que a defesa da qualidade do ensino e da pesquisa passa necessariamente pela defesa dos trabalhadores que garantem a manutenção e organização destes espaços.
Após mais de um mês de greve, a reitoria continua sem negociar com o movimento estudantil. Apesar de muitos estudantes terem retornado às aulas, parte considerável continua em greve. Mais do que isso: parte do movimento estudantil viu a necessidade de aprofundar a luta. Assim, os estudantes da USP prestaram solidariedade e caminharam lado a lado com os trabalhadores da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP), da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e do Metrô, que neste momento lutam contra a ameaça de privatização. Essas companhias, assim como a USP, estão reféns do governador reacionário Tarcísio de Freitas, ex-militar e ex-ministro de Bolsonaro. Tarcísio adota uma estratégia de enfrentamento direto, acusando os trabalhadores dessas empresas estatais de sabotarem seu trabalho, ao mesmo tempo em que exalta as empresas privatizadas6, retira verba das universidades públicas7 e ameaça reduzir o orçamento da Educação em mais de R$ 9,6 bilhões8. Entretanto, da mesma forma que o movimento estudantil resistiu ao ataque direto da direção da FFLCH, com sua segurança privada e a PM, também resistiremos às novas ameaças!
PS: desde que entreguei a primeira versão deste breve artigo o movimento estudantil precisou se reorganizar. O motivo foi um ataque direto da reitoria para penalizar os estudantes. Ao perceber que algumas faculdades voltaram com as atividades e que a greve estava se enfraquecendo, a reitoria soltou um comunicado falando que as faculdades deveriam diminuir a frequência dos estudantes com base no tempo em que as faculdades permaneceram em greve. Na prática, todos os alunos da graduação das faculdades que estão em greve desde o dia 18 de serão reprovados. Isto implica na perda de bolsas e até mesmo na expulsão de estudantes que entraram em 2023. A Associação de Docentes da USP se posicionou contrária a este comunicado, e disse que as faculdades não deveriam implementá-lo9. Os estudantes, desde então, organizaram assembleias e atos exigindo que a reitoria retirasse o comunicado, demonstrando como a arbitrariedade neoliberal precisa ser enfrentada.
Notas
[1] Sobre a posição da USP nos rankings internacionais de avaliação das universidades, é possível conferir em: https://www.saopaulo.sp.gov.br/ultimas-noticias/ranking-internacional-aponta-usp-como-a-melhor-universidade-da-america-latina-e-caribe/
2 Para conferir os números de estudantes, professores e demais funcionários da USP: https://depar.usp.br/num/#:~:text=Voc%C3%AA%20conhece%20a%20USP%3F,e%20quase%20seis%20mil%20professores
3 Sobre o aumento da quantidade de estudantes cotistas, ver: https://jornal.usp.br/institucional/com-541-de-ingressantes-de-escolas-publicas-vestibular-2023-foi-o-mais-inclusivo-da-historia/
4 Disponível em: https://adusp.org.br/movimento-discente/greve-geral/
5 Para maiores informações sobre o orçamento da USP, ver a nota da Associação dos Docentes da USP: https://adusp.org.br/financiamento/usp-informa-no-diario-oficial-que-fechou-2022-com-espantosos-r-57-bilhoes-em-caixa-evidenciando-que-arrocho-salarial-e-decisao-politica-e-gratificacao-foi-cala-boca/
6 Sobre a greve da SABESP, CPTM e Metro, ver: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/10/02/tarcisio-critica-possivel-greve-e-exalta-privatizacao-nos-transportes.htm
7 Para saber mais sobre o corte de verbas das universidades públicas do estado de São Paulo: https://sintunesp.org.br/images/arquivos/F6/boletins/2023/Boletim_do_Forum_-_Reuniao_tecnica_e_outros__-_10-10-2023.pdf
8 Sobre o corte de verbas da Educação em São Paulo: https://www.adunesp.org.br/noticias/pacote-de-maldades-de-tarcisio-chega-na-alesp-privatizacao-da-sabesp-reforma-administrativa-e-reducao-do-orcamento-da-educacao-entidades-convocam-ato-unificado-para-20-10
9 Para ver a nota da ADUSP sobre o comunicado da reitoria: https://adusp.org.br/universidade/freq-jupiter/
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